Cóccix-ência: Antes de pensar em tirar, reflita!

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“Pra cada rap escrito, uma alma que se salva”

Criolo, com certeza um dos melhores artistas da música brasileira das últimas décadas, sendo bem aceito tanto pelo público do rap, quanto pelos fãs de MPB ou os frequentadores assíduos de rodas de samba.
Lembro-me de tê-lo conhecido pela canção “Não existe amor em SP”, talvez a mais conhecida dele, e que muitos fazem referência à essa música em suas letras, mas eu a ouvi em 2013, ano em que Criolo havia lançado o single Duas de cinco que trazia no “lado B” a faixa “Cóccix-ência”, com 4min50s. Uma daquelas músicas que você já sabe que é boa só pelo nome, que pode te levar a ter várias reflexões e interpretações, mas não é somente o título que faz isso, resolvi expôr minha interpretação dela aqui.

Duas De Cinco (Single)
Duas de cinco (2013)

Como sempre, gosto de começar analisando o instrumental, que aliás, é um ponto fortíssimo dessa track, começando com o riff de baixo (que começa sozinho e segue contínuo até o final) e a presença de tambores que dão um aspecto tribal a esse início e a ambientação da música fica por conta de efeitos sonoros que te trazem a impressão de ter várias coisas voando ao seu redor, em seguida entra a bateria e o teclado, um rhodes daqueles típicos de jazz (tal como o ritmo da bateria, mas, ao mesmo tempo, bem compassado, até porque se trata de um rap). Em seguida, a primeira vez em que ouvimos a voz de Criolo ele apenas declama a seguinte frase:

“Deixa o sangue coalhar
Deixa o orvalho secar
Amanhã é outro dia
Isso pra quem acredita”

Só destas frases iniciais podemos tirar tanta coisa, mas podemos resumir esse trecho com a seguinte frase:

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É quase que um ode à indiferença, não importa quantas pessoas morram ou quantas oportunidades perdemos no dia de hoje, o amanhã terá as mesmas coisas, embora muitos acreditem que será diferente.

Mas calma, o homem ainda nem começou a cantar, e após essa recitação, vem o refrão da música:

O que não é seriado da Fox
É playboy se acabando no óxi
Artesanato humilde de Durepoxi
E antes de pensar em tirar
Vai tomar no seu cóccix

Isso é o que mais me encanta nas letras do Criolo, as metáforas que, ao primeiro olhar, fazem com que a música soe como um quadro abstrato, mas quando se para para pensar um pouco você percebe que trata-se de algo genial.

Com o este refrão já podemos definir o que seria o “tema central” da música: “DROGAS”

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É DROGA!

O que não é seriado da Fox
É playboy se acabando no óxi

Caso você não saiba, a Fox é uma emissora de TV fechada, que costuma reproduzir em sua grade filmes, desenhos e séries como Prision Break, Gotham, Arquivo X e The Walking Dead.

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The Walking Dead é uma série pós-apocalíptica focada em um grupo de sobreviventes de um apocalipse zumbi. Logo, neste trecho da música, Criolo faz uma comparação entre os zumbis de The Walking Dead com os usuários de drogas como o crack, que geralmente são pessoas provenientes das classes mais baixas da sociedade. Mas ao mesmo tempo, não é só pobre que tem acesso a drogas pesadas, pois muitas pessoas das classes mais alta têm acesso, por mais que de forma diferente, a drogas como o óxi.

Artesanato humilde de Durepoxi
E antes de pensar em tirar
Vai tomar no seu cóccix

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Este “artesanato” retratado na música são os cachimbos de crack que são feitos manualmente utilizando quaisquer materiais, até mesmo Durepoxi, massa usada para colar ou vedar objetos. Os usuários de crack geralmente se integram a zonas de fácil acesso à droga, como a Cracolândia em São Paulo, e acabam vivendo por lá, Em maio de 2017, o prefeito João Dória resolveu limpar a área, o recado de Criolo com a música poderia ser direcionado ao prefeito.

Encerrado o refrão, dá-se o início a primeira estrofe.

Pavão que não tem rabo paga pau pra espanador

Imagem relacionadaEssa frase poderia, muito bem, ser um ditado popular. O pavão é o símbolo da beleza, mas isso se deve a sua cauda, que é colorida e abre-se como um leque, dentre outras coisas, para atrair fêmeas, o processo de seleção sexual da ave tem como melhor parceiro, aquele com uma maior cauda ou mais bela.

A cauda da ave, quando aberta, lembra um pouco um espanador, que , objeto sem qualquer valor especial e sem beleza alguma. Logo, um pavão que não possui cauda não tem nada para exibir-se, e talvez um espanador possa lhe ser útil para a substituição. Isso é uma alegoria para pessoas que têm um ego inflado, mesmo sem terem do que ostentar.

Na favela muita dor, nosso rap leva o amor

Como o próprio Criolo diz em “Duas de cinco”: “Pra cada rap escrito, uma alma que se salva”, o rap continua sendo uma saída para pessoas de zonas periféricas, até porque é algo que pertence à elas e é muito apreciado por elas.

Suas prata não é nada sem o conceito do bando
É que uns paga pau pra ladrão
Mas de ladrão só tem os pano

Por mais que você tenha dinheiro, você não é ninguém se não viver em harmonia com a comunidade que te envolve. Isso vale para pessoas de classes mais altas da sociedade que querem “pagar de bandido” usando o estilo trapstar, e sendo agressivas com as pessoas a seu redor.

Fica sapato no canto
Atitude de homem vale mais que ouro branco

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Só no sapatinho ôo

“No sapatinho” é uma expressão utilizada para descrever algo feito de forma cautelosa, sem alardear. Neste trecho Criolo diz que o melhor que você tem a fazer é ficar precavido, a tudo que acontece e que foi citado anteriormente.

“Ouro branco”, além de um dos metais mais valiosos que existem é também uma das formas de apelidar a cocaína, por mais que seja “valiosa”, uma atitude sensata e de respeito vale muito mais que isso. Então você deve estar sempre atento a tudo que acontece para poder tomar decisões regradas.

Isnuque na sinuca é cadeirada na nuca
Nego velho só observa
Já os novinho
(Hadouken)

“Isnuque” é uma forma abrasileirada de dizer “snooker”, que é do original “sinuca” em inglês, porém, no Brasil, esse foi o nome dado à técnica em que um jogador posiciona a bola branca na mesa de uma forma que impossibilita a jogada do adversário, assim ele perde uma bola. Uma cadeirada na nuca talvez fosse uma boa punição para tal malandragem, ou seja, se alguém quer pagar de esperto irá sofrer consequências desagradáveis. Assim é também no ambiente do tráfico, onde “nego velho”, os mais experientes, mais altos na hierarquia, ficam sossegados e colocam garotos mais jovens, menores de idade, para executarem as funções mais “sujas”. Isso justifica o grito no fundo que diz “Hadouken”, que é o que o personagem Ryu diz ao executar o golpe de mesmo nome no jogo Street Fighter, e é assim que os menores envolvidos no crime são vistos, como lutadores de rua.

Mas calma, filha
Trabalhe a ansiedade
O respeito prevalece independente da idade

Dos beat, das biatch
Do traje, do pisante
Respeita o Judas aê pra ele achar que é mais homem

(Shoryuken)

Foto de quando eu tinha uma glock.
Gang, bro, SKRRRR!

Novamente a música diz para você manter-se calmo, não há porquê se preocupar com o que foi dito nos versos anteriores, pois, segundo ela, no mundo do crime todos são respeitados: independentemente da idade dos beats, ou seja, se você ouve rap “das antigas”, como Racionais MCs , que tratavam de questões sociais e temáticas críticas, ou rap da “nova escola”, como Costa Gold, que aborda mais a ostentação e o uso de drogas; independentemente da idade das biatch (forma de falarbitchou “puta”), ou seja, tanto as mais experientes quanto algumas que são até menores de idade; independentemente da idade do traje e do “pisante”, se você é um “bandidão das antigas” que se veste como um mafioso, ou se você se veste como os chamados trapstars, os artistas de trap (derivação do rap criada no ambiente do crime para exaltar o mesmo).

Todos merecem respeito, até mesmo os “caguetes”, aqueles que entregam as pessoas envolvidas nesse meio para polícia ou para rivais, às vezes para ganhar recompensas, traindo seus companheiros (como Judas que traiu Jesus, o vendendo para os soldados romanos por 30 moedas de prata) você deveria respeitá-lo e deixá-lo achar que está correto, assim ele se sente melhor que os outros, mas isso não irá durar muito tempo, pois em breve levará um “Shoryuken” (outro golpe do Street Fighter, realizado pelo personagem Ken).

Sem humildade, mãe, não dá esquema
É fei’ colar no palco e não respeitar a vivência

Este trecho é uma crítica a outros rappers que são desumildes, mesmo subindo no palco para cantar músicas que pregam, dentre outras coisas, a paz ou igualdade social, muitos se acham superiores e não respeitam a vivência entre os cidadãos ou entre outros rappers.

Pra quem curte o preconceito e só vive de aparência
Não vá raspar
Não mexe, ini-sequência

Mais uma vez a classes sociais mais altas são criticadas na letra, pois muito posam de boas pessoas, mas é só faixada, já que são preconceituosos com pessoas de classes mais baixas, e essas pessoas não devem tentar interferir no ambiente que é retratado na música.

Em seguida a música repete o refrão, porém o final da letra muda.

[…]
E antes de pensar em tirar
Reflita!

Ou seja, antes de pensar em simplesmente esvaziar a área que se concentra os consumidores e fornecedores da droga, pare para pensar que aquelas pessoas que estão ali, muitas das vezes não têm para onde ir.

Após o refrão, se inicia um solo de guitarra frenético e com muita distorção enquanto criolo faz outra declamação.

“E a cada mil metros alguém morre de frio
E a cada cem metros alguém morre ferido
E a cada dez metros alguém conta o lixo
E a cada segundo uma revolta por tudo isso”

Essa é a parte mais explícita da música, no sentido de que é mais fácil interpretar o que é falado, é simplesmente a triste realidade social que enfrentamos, e ainda assim muitos se revoltam com tudo isso, porém, nada para reverter a situação é feito.

“O zumbi que ri
Tá na tua sala te esperando pra janta
E você é a janta”

Mais uma vez é reforçada a inércia do cidadão comum a tudo de ruim que acontece no mundo, se comportam como verdadeiros zumbis.

“Dormiu com medo
E acordou com o destino”

Se tirarmos essa frase do contexto, podemos aplicá-la a inúmeras ocasiões, você poderia até colocar ela como sua bio em alguma rede social. Mas levando em conta o tema tratado na música, essa frase pode se referir a alguém que entra para o meio do crime com medo, mas tempo depois já está totalmente integrado ao mesmo, ou seja, seu destino já está traçado.

E após repetir o refrão mais uma vez a música termina com um conjunto de vozes dizendo “Reflita!”, que é exatamente o que você deve fazer ao escutar essa música.

E antes de pensar em tirar
Reflita!

PS: “Música, música é amor, mas é também ato político. Façam valer a vida de vocês! Não vamos subestimar a capacidade da nossa juventude, música com conteúdo, música com inteligência, música com objetivo, entretenimento também, mas não tem nenhum burro aqui no rolê, não tem nenhum imbecil ignorante!”

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