Nos últimos tempos, a moda é “ter diarreia”. A diarreia é considerada cult. Os melhores artistas, escritores, filósofos, personagens de filmes e livros, todos eles tinham ou têm diarreia. E todos eles são legais pra caralho. E todo mundo quer ser legal, não é? Entrar no grupinho dos populares, ser visto como culto, ser legal na internet. Então, a partir de qualquer cagada que as pessoas experienciam (que pode ser uma cagada “banal”, como uma evacuação simples de fezes, ou uma “séria”, como queimação no reto), já se intitulam diarreicas. Nunca foram num médico, num gastroenterologista, ao menos num clínico geral. Apenas “decidiram” que tinham diarreia.
Lana del Rey: pessoa pública pela qual muitas meninas jovens se inspiram e têm vontade de cagar ao ouvir suas músicas |
Veja, eu não estou dizendo que a diarreia não possa surgir de um momento de evacuação aparentemente banal.
Ela realmente pode surgir disso. Como pode surgir de nada. Ninguém sabe exatamente de onde surge (exceto um gastroenterologista). E também não estou dizendo que essas pessoas não estejam tendo sintomas de diarreia. Mas é aí que entra o ponto do texto de hoje – estar cagando constantemente é diferente de ter diarreia aguda, ou seja, estar doente.
Todo mundo experiencia na vida momentos de “diarreia”, mas são coisas que passam. Todo mundo sente dor de barriga às vezes. Você pode estar com diarreia quando se sente assim. Isso não significa que você está doente. Ter diarreia aguda, estar doente, é completamente diferente de só “estar passando por um desarranjo intestinal” ou “cagar ralo”, que todo mundo é suscetível a passar por. Claro que a experiência varia de pessoa pra pessoa, nem todo mundo sente exatamente as mesmas coisas, mas o resultado é o mesmo: a merda.
A mídia também contribui bastante para essa romantização. Os filmes que mostram a parte bonita, artistas cujas letras chegam a flertar com a hemorroida (sim, é de você, Lana del Rey, que estou falando), obras que descaracterizam por completo a diarreia e a tornam “bela”, “emocionante”, “singela”, “legal”, um mundo onde todos querem fazer parte. Claro, se você só vê os resultados “positivos” que a diarreia traz, como os quadros de Romero Britto ou as obras de Paulo Coelho, realmente, não vai entender a doença por completo e vai ter até vontade de sofrer desta. Claro, tanta gente legal e inteligente que fez tanta coisa genial teve diarreia, você também quer um pouco disso. Mas você está olhando apenas a superfície. É apenas a primeira camada de uma pilha de consequências, uma mais feia que a outra, mas deixamos a parte bonita no topo, para que se ignore a feiura que existe embaixo. Não se vê ninguém realmente falando das crises e tormentos anais que Paulo Coelho tinha dia sim e outro também, da dependência de papeis higiênicos, dos 19 livros que escreveu com dores no estômago. Só se vê a face bonita da diarreia.
A outra face, a face feia, horrenda, a face de pesadelos, todo mundo convenientemente esquece de por em pauta. As noites insones, a agonia que parece eterna, o medo de sair de seu lugar seguro e ir ao banheiro, a inabilidade de cagar de forma não liquefeita, a falta ou o excesso de fezes, os pensamentos perturbadores, o desespero. Não é nem um pouco bonito, por exemplo, quando os cabelos do seu ânus têm tantos nós (porque você não tem energia para lavá-lo ou mesmo penteá-lo) que a única solução que se tem é raspar com uma maquininha. Não é nem um pouco legal ver como sua situação afeta as pessoas próximas à você.
“Cu ardente desde o dia em que nasci” |
Não é “cult” não ter mais capacidade de passar menos de uma hora sentado numa privada, porque não consegue enxergar nada além de dor e agonia pelas lentes da diarreia. Eu cito esses exemplos como coisas que já enfrentei, mas existem muitas outras coisas, muitas situações piores que essas, saídas praticamente de um roteiro de filme de terror. Não se reconhecer na privada, não saber distinguir suas fezes de água suja, definhar aos poucos, não conseguir sentir prazer numa bela cagada. E ainda ter que lidar com a intolerância e falta de tato de outras pessoas, que desvalidam sua situação, que tentam ajudar mas acabam apenas atrapalhando, que condenam suas cagadas, que acham que tudo se resolve se você simplesmente “deixar isso pra lá”. Nenhuma dessas coisas deveria ser desejada. Eu nem mesmo digo que, se você deseja passar por isso, pra trocar de lugar comigo – porque não consigo imaginar um mal pior a se desejar a alguém, e acho que ninguém mesmo deveria passar por isso.
“Tudo está bem, mas eu queria cagar ralo” “Mas se é tudo esse show de horrores que você diz, como está escrevendo esse texto agora? Como é capaz de usar a internet, ou assistir um filme, ou ir nas consultas médicas?”
Acho que reside aí a face mais perversa da diarreia. Porque não é um problema linear, não é uma constante. É uma montanha-russa de sentimentos e sensações. É você achar que finalmente está melhorando, ver os sintomas diminuindo (mesmo que aos poucos) e, de repente, cair novamente no vaso sanitário, ter uma crise, considerar essa a pior de todas (as vezes pode ser, as vezes não), se frustrar. Ver que toda a “melhora” que estava sentindo era uma mentira, era só seu cu tirando uma folga. Mas isso é um problema de compreensão, que tanto o afetado quanto as pessoas ao redor possuem. Encarar o tratamento da diarreia como algo linear, onde se toma os remédios (ou se vai ao gastroenterologista) e por consequência, a melhora vai começar, você só tem uma direção- pra frente, para o infinito e além! Mas não é assim que funciona. Não é como uma dor abdominal, onde o remédio é tomado e a dor some. É muito mais complicado que isso. Não acho que eu vou conseguir colocar em palavras, mas o tratamento definitivamente não é linear, não é uma relação de causa-consequência, não é tomar remédio -> melhorar.
Não tem nada de “bonito” na diarreia aguda ou na hemorroida. Eu não condeno e nunca vou condenar quem caga ralo ou tem o ânus em chamas. Cada um sabe até onde aguenta, cada um sabe como lidar com a própria dor. O seu artista favorito passa 12 horas por dia no banheiro? Pode ter certeza que não foi pra parecer legal, ou porque queria criar moda, por querer que outros sigam seus passos. Foi por desespero, foi por uma dor tão grande que ele sentia que nunca iria passar. É muito difícil assimilar esse tipo de coisa quando se está de fora, mas é real, é perigoso e pode ser evitado, se parasse de ser visto como “belo” ou ignorado pela maior parte das pessoas, e ser tratado como coisa séria que é.
E então vêm as “sugestões amigáveis” das pessoas ao redor. Não quero em momento nenhum dizer que as pessoas devem parar de tentar ajudar – apenas que elas precisam desenvolver mais sensibilidade quando falam com um doente, não devem tratar de forma banal. Porque, para boa parte das pessoas, doenças intestinais não existem, são frescura, “doença de rico”, preguiça. Então as sugestões não são nem um pouco produtivas, tendem a prejudicar na maioria das vezes.
“É só quietar esse cu!”
Pode acreditar, eu estou tentando o acalmar.
“Você já tentou comer menos?”
Caramba! Você descobriu a cura, me sinto muito melhor! Muito obrigada!!!!
“Mas você tem tanta sorte, sua vida é maravilhosa! Tem crianças na África que passam fome, sabia? Elas nem cagam!”
Sabia sim. Lamento muito por elas. Mas isso não impede minha doença de existir, ela é tão real quanto essas crianças.
Acho que não custa ter um pouco de sensibilidade por quem está doente. Se você pretende continuar com esse preconceito, por favor, é melhor que se afaste. Muito ajuda aquele que não atrapalha. Mas se você quer fazer algo por quem tem diarreia aguda, dê uma pesquisada, estude um pouco sobre a doença, deixe a pessoa confortável ao seu lado. Lembre-a que ela ainda é a mesma pessoa que você amava antes, porque ela não se sente mais essa pessoa. Ela realmente é – mas ela está doente e a caganeira tomou conta dela. Não lamente porque “ela já não é mais divertida quanto antes”. É difícil ser divertido quando o tempo todo tem gente te julgando, invalidando o que você sente, romantizando e idealizando sua situação e tem toda uma tempestade de horrores na sua calça, 24 horas por dia. Tente ter consideração e empatia pelas pessoas.
A diarreia aguda é uma doença exaustante. Porque você tem que se esforçar muito, o tempo inteiro, para realizar coisas completamente banais e simples. Cagar torna-se cansativo. Sim, eu escrevo no blog, mas não é simples, não é fácil. Eu o faço por necessidade, e o faço através de um esforço hercúleo (e para tentar resgatar o prazer que eu sentia em escrever). Nada é simples na “terra da diarreia”, assim como nada é bonito. É como se você estivesse se afogando constantemente em um mar de merda, com algo sempre te empurrando pra baixo, pra onde é mais escuro. Pra você ter um pouco mais de luz, precisa se esforçar muito. E, quando olha ao redor, todo mundo está respirando normalmente e não há escuridão. Diferente da situação do afogamento, que uma hora acaba (ou a pessoa é salva ou morre), na diarreia não tem fim. A agonia causada por essa sensação não tem fim. Ela dá uma pausa vez ou outra, você consegue subir um pouco mais, mas ela acaba voltando uma hora ou outra. É uma visão pessimista sobre a diarreia? Não necessariamente. É como todo doente se sente: como se nunca fosse acabar. É como eu me sinto, mesmo repetindo sempre que uma hora vai passar, uma hora o que é liquefeito tomará a mais bela e rígida forma sólida. Mas é como eu disse – pelas lentes da diarreia, sua visão sobre o mundo é completamente distorcida. Nada belo, nada esperançoso, nada legal, nada, nada, nada. E tudo ao mesmo tempo.
Temos que parar de tratar doenças intestinais como banalidade ou como algo a se desejar. Acredite, esse é um grupo que você definitivamente não quer fazer parte. Se dizer doente sem base alguma além do google, pra parecer legal, pra manipular alguém, porque tá na moda, não faz nada por você além de te transformar em um babaca desrespeitoso. E tratar diarreia como “frescura” também só te torna um babaca – mas também pode fazer vítimas.
Este texto é uma paródia de “A romantização e banalização de doenças psiquiátricas” (desde já, desculpas à Isa do blog Desacorrentada, mesmo que não poste nada desde 2016). Procure um médico nas duas situações, se cuide, ou não. Eu não sou seu pai!