Depoimentos simples de coração

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Um dos maiores mistérios do Rock brasileiro talvez seja a repentina e conturbada saída de Augusto Licks da banda Engenheiros do Hawaii.

No final de 1993 o guitarrista registra a banda em seu próprio nome e inicia um processo judicial que leva fim ao power trio mais progressista do anos 90 no Brasil.

Até hoje não se sabe ao certo os motivos de Licks romper com os outros integrantes e colocar a banda da qual era “contratado” em seu nome, tudo que se tem são boatos, mas o que se sabe ao certo é que o fundador Humberto Gessinger tem mais que um dedo nisso.

Assistindo shows e participações em programas na época dá pra perceber um clima tenso entre o guitarrista e o baixista, a dupla que anos antes era unha e carne nos palcos nesse momento parece brigada, Licks não dirige nem mesmo o olhar à Gessinger, e o alemão também não perdoa. Apesar desta introdução não vou teorizar sobre o fim da formação “clássica” dos Engenheiros, como o título diz, vou analisar e comentar algumas letras do álbum que se segue ao fim: Simples de Coração.

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Lançado em 1995 pela BGM, foi o único álbum da banda com uma formação de quinteto, cotando com dois guitarrista e um tecladista, e tendo sido gravado nos EUA. O som da banda mudou muito, canções onde antes Humberto e Licks faziam malabarismos nas cordas para preencher os espaços vazios deixados por um trio agora tem sustentação em uma guitarra base e em teclados.

O álbum possui 11 músicas, destas, 2 chamaram minha atenção nas letras.

Hora do Mergulho

Feche a porta, esqueça o barulho
Feche os olhos, tome ar: é hora do mergulho

Eu sou moço, seu moço, e o poço não é tão fundo
Super-homem, não supera a superfície
Nós mortais, viemos do fundo
Eu sou velho, meu velho, tão velho quanto o mundo

Eu Quero paz:Uma trégua, do lilás-neon-Las Vegas
Profundidade: 20.000 léguas
“Se queres paz, te prepara para a guerra”
“Se não queres nada, descansa em paz”
“Luz” – pediu o poeta (últimas palavras, lucidez completa)
Depois: Silêncio

Esqueça a luz… respire o fundo
Eu sou um déspota esclarecido
Nessa escura e profunda mediocracia

Em termos musicais a canção é maravilhosa, inicia com um coro de crianças cantando a melodia com “lá lá lá” e aos poucos cada instrumento entra em seu tempo, não é uma música rápida, é de certa forma até simples, podemos resumi-la à dois “riffs”, mas é linda, facilmente à mais sentimental do álbum. O próprio Humberto comentou sobre ela em seu blog: “eu só conseguia lembrar de ter chorado escondido no estúdio vazio ao ouvir a primeira mix de Hora do Mergulho“.

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A letra é a parte mais especial, no primeiro verso parece aquilo que se diria à uma criança quando os pais estão brigando, e se pensarmos que ela foi composta durante o fim do trio essa interpretação assume um ar de conversa consigo mesmo, como se o Humberto quisesse fugir e esquecer de tudo que estava acontecendo em relação à banda.

O segundo verso, onde diz que “é Hora do Mergulho” ainda tá nisso da conversa consigo mesmo, mas dessa vez dizendo para se preparar “tome ar”, que chegou a hora de enfrentar o que viesse, chegou o momento “inevitável”.

“Eu sou moço, seu moço” me soa como uma forma de se explicar, usando a desculpa de ser jovem e cometer erros, mas também diz que o outro também não escapa desses erros, como diz o verso seguinte “o poço não é tão fundo” pra mim se assemelha à “farinha do mesmo saco”, ou seja, ele admite o erro mas não o limita somente à si.

O trecho que cita “Super-homem” não faz referência ao super-herói da DC comics, mas sim à Nietzsche:

E assim falou Zarathustra ao povo: “Mostro-vos o super-homem. O homem é algo que deve ser sobrepujado. Que tendes feito para sobrepujá-lo ? “Todos os seres até hoje criaram alguma coisa superior a si mesmos; e vós quereis ser o refluxo deste grande fluxo e até mesmo retroceder às bestas, em vez de superar o homem?”

[Friedrich Nietzsche, “Prólogo de Zarathustra”, Assim falou Zarathustra (1883)]

Acredito que Gessinger quis dizer que a banda foi a “coisa superior a si mesmo” mas que o super-homem não pode superá-la (“não supera à superfície”), uma metáfora ao orgulho e o ego.

Os versos que se seguem ressaltam o que foi colocado e dizem que erros acontecem “nós mortais viemos do fundo”.
Sem rodeios, ele diz que quer paz, trégua, quer que aquilo acabe.

Faz referência à Julio Verne e seu livro 20.000 léguas, além de citar filósofos, como fez no trecho:

“‘Luz’- pediu o poeta
(Últimas palavras, lucidez completa)
Depois: silêncio…”

Referência à célebre frase do filósofo iluminista Goethe no momento de sua morte: “Luz! Mais Luz!”.

No fim da canção Humberto confessa ser uma pessoa autoritária na banda:
“eu sou um déspota esclarecido / nessa escura e profunda mediocracia”
O despotismo esclarecido é uma forma de governo que mesclou o absolutismo às ideias iluministas.
“Mediocracia” seria uma referência à própria banda.

A Perigo

Planos de voo
Tava tudo em cima: céu de brigadeiro sobre nós
Pane… pânico
Perdemos a altura… puxaram o tapete voador
Hoje estamos a perigo
Hoje estamos separados, divididos
Mas um dia, um dia, nós seremos a maioria

Pane…! que pena!
Panos quentes
Fica tudo como está; no mesmo lugar… impunemente
Hoje estamos a perigo
Hoje estamos separados, divididos
Mas um dia, um dia, nós seremos a maioria

Eu sigo em frente, pra frente eu vou
Eu sigo em frente, pra frente eu vou
Eu sigo em frente, pra frente eu vou
Eu sigo enfrentando a onda
Onde muita gente naufragou

Nós seremos a maioria
Seremos a maioria

A Perigo diferente da música anterior é mais agitada, mais rápida com guitarrista distorcidas e solos, soaria muito bem como hard rock se não fosse pelo acordeon que completamente de forma incrível a canção.

Vi pessoas levando a interpretação da letra para um viés político, forçando um pouco até vai, mas tá na cara que a música fala sobre o fim do trio, especificamente depois da saída, enquanto Hora do Mergulho narra durante o fim, A Perigo narra o depois.

“Planos de voo” exemplifica como os membros da banda estava com relação ao futuro, esperançosos e confiantes.

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“Céu de Brigadeiro” (brigadeiro é a patente militar, não o doce) uma metáfora para a situação da banda, é uma expressão popular que diz que está tudo bem, que está no melhor momento, em seguida é contado que tudo desabou “perdemos a altura/ puxaram o tapete voador”, o fim chegou.

O refrão não poderia ser mais direto: “separados, divididos”, a desgraça já aconteceu, o fim já foi, mas Gessinger se mostra esperançoso: “Um dia seremos a maioria”, um possível retorno do trio, um retorno triunfal onde novamente seriam a maioria.

Os versos “Eu sigo em frente/ pra frente eu vou” também não poderiam ser mais claros, mesmo que tenha acabado aquele momento, a banda ainda não acabou, a música ainda toca.

“Eu sigo enfrentando a onda onde muita gente naufragou” essa onda seria o fim das bandas por brigas e desavenças onde muitos músicos terminam suas carreiras.


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São interpretações minhas com base no que pesquisei e conheço da banda, não quer dizer que estão certas, pode ser que no fim “Hora do Mergulho” esteja falando mesmo de mergulho assim como “Segundo Sol” de Nando Reis falava mesmo de um segundo sol e não de traição como teorizavam.

Uma resposta

  1. Muito legal sua visão sobre hora do mergulho..eh uma linda e enigmática música.Eu não conhecia as citações.Muito bom, parabéns

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