Após toda aquela polêmica do show do Roger Waters aqui no Brasil, onde “Ele não” foi exibido no telão, começaram a surgir alguns vídeos, no youtube, daquele pior formato. Coisas como “Você NÃO entendeu The Wall!” e outras explicações.
Primeiramente, gostaria de parabenizar o ex-baixista do Pink Floyd (ou sua equipe) pelo gesto, que é totalmente compatível com o que ele vem pregando há bastante tempo. No entanto, o que tenho visto por ai são pessoas dizendo “Essa galera que tá reclamando do show nunca deve ter ouvido The Wall, que é sobre o facismo” e… Não, The Wall não é “sobre o facismo”, é muito mais que isso.
Atenção: se você nunca ouviu o álbum, recomendo que faça antes de ler esse post. Pode parecer estranho, mas esse texto contém spoilers da história contada por The Wall. Por tanto, sugiro que ouça antes, interprete as músicas de sua própria maneira e depois volte para ler o texto. O álbum está disponível de graça e completo no canal oficial da banda do youtube. Claro, você não precisa ouvir tudo de vez, são mais de 20 músicas, né.
Pois bem, se você não ouviu o álbum ou leu sobre ele, talvez não saiba que ele conta a história de Pink, garoto que nasceu durante a 2º guerra mundial. Por conta de algumas impressões, as pessoas dizem que o álbum fala sobre autoritarismo, mas não é bem assim.
Não precisa ir muito longe para entender isso. A música mais famosa do álbum, Another Brick in the Wall Part. II, apesar de possuir um paralelo com o autoritarismo, tem como temática principal a rigidez das escolas britânicas e como os professores humilham/desmotivam os alunos. Um bom exemplo dessa crítica é o último trecho da letra, onde um professor briga com alguns alunos.
If you don’t eat yer meat, you can’t have any pudding
How can you have any pudding if you don’t eat yer meat?
You! Yes, you behind the bikesheds, stand still, laddie!Se você não comer sua carne, não vai ganhar pudim
Como você poderia ganhar algum pudim se não comer sua carne?
Você! Sim, você atrás do bicicletário! Fica parada, mocinha!
Mas não para por ai. A quantidade de assuntos abordados é bem grande, o que é esperado considerando que o álbum possui 26 músicas. Uma das primeiras, por exemplo, cita a primeira tragédia a ocorrer na vida do personagem principal da história que The Wall conta. Another Brick in the wall part. I fala do pai de Pink, que teve de lutar na segunda guerra mundial, mas acabou morto em batalha, exatamente o que aconteceu com o pai de Roger Waters. Novamente, temos aqui o fascismo como um plano de fundo, mas não como tema principal. Para a narrativa do álbum, é sobre a ausência e morte prematura do pai, para a vida real, é a germinação da aversão total de Roger às guerras, generais e pessoas muito poderosas/influentes.
Invertendo o último parágrafo, que fala do pai ausente de Pink, temos aqui uma música que fala da mãe superprotetora dele: Mother. Aliás, essa é uma das coisas que mais marcam o protagonista ao passar da história. A figura da Mãe até volta mais tarde, na música The Trial, onde Pink enfrenta todos os seus maiores traumas. Para entender a mensagem dessa música, basta ler dois trechos:
Mother do you think she’s good enough, for me?
Mother do you think she’s dangerous, to me?
Mother will she tear your little boy apart?
Ooh ah,
Mother will she break my heart?Hush now baby, baby don’t you cry.
Mama’s gonna check out all your girlfriends for you.
Mama won’t let anyone dirty get through.
Mama’s gonna wait up until you get in.
Mama will always find out where you’ve been.
Mama’s gonna keep baby healthy and clean.
Ooh baby, ooh baby, ooh baby,
You’ll always be baby to me.Mãe, você acha que ela é boa o suficiente para mim?
Mãe, você acha que ela é perigosa para mim?
Mãe, ela vai fazer seu homenzinho chorar?
Ooh ah,
Mãe, ela quebrará meu coração?Shh bebê, não chore
A mamãe vai checar todas as suas namoradas para você
mamãe não vai deixar nenhuma pervertida se aproximar
mamãe vai ficar esperando até você entrar
mamãe sempre vai descobrir onde você esteve
A mamãe vai manter o bebê saudável e limpinho
Ooh bebê, ooh bebê, ooh bebê
Você sempre será meu bebê
O álbum também vai muito além dos parentes. A música Goodbye Blue Sky, uma das mais lindas do álbum, fala da guerra no ponto de vista de uma criança e conta com um violão que imita o som dos aviões lançadores de bombas. Young lust, One of my turns, Vera e Don’t leave me now exploram, juntas, os relacionamentos fracassados e a perversão.
Mas, mais importante ainda, temos o tópico da solidão e isolamento. Tópico que merece atenção especial pois é apontado por Roger Waters como um dos pontos de partida para o surgimento dos pensamentos fascistas (que ficam, novamente, em segundo plano aqui). Em Hey You, Is there anybody out there e Confortably Numb, temos uma noção do estado miserável e hermético do protagonista, principalmente através da frase “Is there anybody out there”, repetida diversas vezes por aqui.
Mais para o fim, temos, claro, as músicas que falam explicitamente sobre o fascismo, talvez mais um nazi-fascismo. In the flesh, Run like hell e Waiting for the Worms espumam ódio contra minorias e os “fracos”. Uma mensagem terrível, mas necessária para compreendermos a obra como um todo. Sério, pior do que tudo é ver aquela pessoa que lê a letra dessas músicas e fica “Meu deus, Pink Floyd é uma banda nazista!!!”. Gente, vamos entender o contexto da obra? Obrigado.
As três últimas (Stop!, The Trial e Outside the wall), tem letras que falam claramente sobre o psicológico e o emocional de Pink, incluindo cenas onde ele é oprimido por todos os seus principais traumas e é condenado a se expor ao mundo.
Em conclusão, The Wall é um álbum que fala sobre diversas assuntos de forma única. Acompanhando a história de uma pessoa, fica mais fácil entender como cada trauma (ou “tijolo”) afeta nossa forma de ver o mundo. Essa obra, como um todo, não é sobre o fascismo, mas sim sobre como os traumas nos levam ao isolamento e os efeitos disso.
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Capa: Filme “The Wall”