Entendendo escolas literárias com Legião Urbana, pt. 1

Compartilhar:

Autor

Renato Russo sempre foi um cara conhecido por dedicar muito tempo ao consumo da arte, seja através da leitura, música ou cinema. Isso se dá em parte por causa daquela vez que ele sofreu um acidente e teve que passar muito tempo de cama. A influência desse costume nas letras da Legião Urbana chega ser tangível. Assim, fica fácil identificar traços de alguma escola literária em suas letras, e é exatamente isso que vamos fazer aqui. Iremos do Trovadorismo até o Barroco nessa primeira parte, completando numa eventual continuação.

Já que vamos fazer por ordem cronológica, é claro que vamos começar pelos cavaleiros portugueses!

Trovadorismo

 O trovadorismo é, basicamente, a literatura medieval. Não necessariamente a que representa todo o período histórico medieval, mas sim aquele que representa o estereótipo invocado por essa palavra. Temos aqui cantigas devotadas ao amor, escárnio e xingamentos também. Por ser o primeiro movimento da literatura portuguesa, é escrito ainda no português arcaico e por isso vemos palavras tão estranhas nas obras. Aqueles que escreviam eram chamados de trovadores e… Não preciso lembrar que o Renato Russo, durante um certo tempo, se apresentava como ‘Trovador solitário’, não é? Foi nesse período que ele compôs grandes hits da banda, como Eduardo e Mônica.

Foto por Sofia Garza

 Maaaaas não é uma música desse período que vai conseguir representar o movimento. Pelo contrário, a música vai vir de um álbum que vem bem depois de tudo isso.

 Com título em inglês e letra escrita no Séc. XIII por Nuno Fernandes, Love Song é a introdução ao álbum V (1991) e também é a música mais curta da banda. Logo depois dela vem outra forte concorrente para representar o Trovadorismo: a clássica ‘Metal Contra as Nuvens”. Mas é muito difícil competir com uma letra retirada diretamente de uma obra do movimento, não?

Pois nasci nunca vi amor
E ouço del sempre falar.
Pero sei que me quer matar
Mais rogarei a mia senhor
Que me mostr’ aquel matador
Ou que m’ampare del melhor.

Com um simples violão e um não-tão-simples sintetizador, essa música prepara o terreno para a ambientação que servirá à maior parte do álbum.
 Sinceramente, é uma daquelas coisas que faz as pessoas estranharem o Renato falando que a banda é punk. Originalmente, aliás, a banda seria realmente só punk, mas um acordo com os produtores transformou a Legião em um grupo Punk/Folk, o que resultou em músicas como essa.

Humanismo

 Nessa escola literária, que serviu como transição para o período classicista, temos o foco na ciência, que estava alçando novos voos, e na antropologia (ou seja, na figura humana). Foi nessa época que Galileu Galilei confirmou a teoria heliocêntrica e construiu um dos melhores telescópios da época. Assim, a arte passou a olhar mais para a humanidade, que assumiu o protagonismo do plano existencial, e para as novas descobertas da ciência.

 E é com o foco na figura humana que surgiu a música Leila, do álbum A tempestade (1996), último lançado enquanto Renato Russo estava vivo. A letra fala do cotidiano de uma mulher (a “Leila”) que mora sozinha com suas crianças e tem suas aventuras e amizades na medida que o dia-a-dia pode providenciar. É uma daquelas músicas que te faz lembrar que Renato escreveu muitas letras pensando em amigos dos integrantes da banda, o que faz parte do esforço deles para fazer com que as pessoas se identifiquem com suas letras.

Classicismo

 Esse movimento vai em movimento contrário ao humanismo, de certa forma. Mesmo que eles tenham temas parecidos (centralidade na figura humana, austeridade, etc…), o humanismo foca no avanço, na ida para frente. Já o que temos nessa escola literária é o habito crônico da humanidade de observar o passado e se inspirar nele. A arte helenística, com suas formas definidas, valorização do intelecto e um certo estoicismo, voltou com tudo. É possível observar essas características nas telas do neoclássico Jacques Louis-David, o pintor favorito de Napoleão e autor da obra “A morte de Sócrates” (1787).

NT: o classicismo “volta” para a arte helenística. O neoclassicismo é um movimento posterior que imita o classicismo ao buscar inspiração na mesma fonte.

  Camões foi o pioneiro do classicismo na literatura portuguesa, estando verdadeiramente a frente do seu tempo (ele morreu em 1580, o classicismo tem o início demarcado em 1600). Considerado por alguns como o maior escritor da língua lusófona, Camões morreu pobre e miserável após contrair diversas dívidas e sofrer algumas desventuras. Seu legado, no entanto, é extremamente rico. Foi ele o autor de “Os Lusíadas”, uma epopeia clássica (heh) que conta a história de heróis exploradores, algo com o que os portugueses facilmente podiam se identificar.

 Como os direitos autorais sobre seus poemas já tinham sido extintos há 329 anos, Renato Russo achou que ele seria uma outra ótima vítima de plágio. Nesse contexto, o cantor brasileiro adaptou o Soneto 11 e adicionou algumas passagens do livro bíblico Coríntios para criar a letra do grande hit Monte Castelo, tornando essa uma das poucas músicas da história da humanidade a contar com um trabalho conjunto entre Camões e Marcelo Bonfá (esperamos que seja a última). A música foi lançada no aclamado álbum As quatro estações, em 1989.

Amor é um fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se e contente;
É um cuidar que ganha em se perder;

– Camões em Soneto 11

 De vez em quando a Legião Urbana dava uma dessas e fazia algo de muito diferenciado em alguma música do álbum. Foi assim com Faroeste Caboclo, Eduardo e Mônica, dentre outras que caíram no gosto do público, independente do que os produtores achavam. Sendo sincero aqui, fazer uma música com letra retirada diretamente de um soneto de mais de 300 anos virar hit é um feito e tanto. Parabéns para a banda.

Barroco

 É a escola literária da contradição. O Barroco está ali constantemente expressando os desejos carnais e a elevação espiritual, o hedonismo e o estoicismo, a refestelação e a oração. Muito presente em pinturas e na própria arquitetura de igrejas, essa escola literária representa uma sociedade em período de mudança, onde dois opostos passam a ficar mais próximos um do outro. Isso vai ser traduzido na arte através da dualidade da luz e da sombra, da fé e do sensual, dos pequenos detalhes e o grande exagero.

identifique a dualidade em “O Êxtase de Santa Teresa”, de Gian Lorenzo Bernini

 Paralelamente, vamos ter, na mesma época, o Rococó, que representa a vertente mais religiosa, sentimental e hedonista do Barroco, inclusive encontrando um campo muito fértil nas igrejas brasileiras, e o Neoclassicismo, que representa a parte simples, estoica e lógica do Barroco.
 É alienígena aos tempos modernos, se você parar para pensar, que a fé já foi intensamente relacionada ao prazer e o êxtase. Até porque, hoje em dia, relacionamos religiosidade ao sacrifício, saber, etc…

Em todo esse contexto de dualidade, lembro bem da música Sereníssima. O título se refere ao modo como era chamada a cidade de Veneza, apesar de que isso não tem nada a ver com a música. A letra consiste de alguém se descrevendo e falando diretamente com outra pessoa, e tem dois trechos especiais que com um contraste bem grande. Compare:

Sou um animal sentimental
Me apego facilmente ao que desperta o meu desejo
Tente me obrigar a fazer o que não quero
E cê vai logo ver o que acontece

Não estou mais interessado no que sinto
Não acredito em nada além do que duvido
Você espera respostas que eu não tenho mas
Não vou brigar por causa disso

  Viu? “Sou um animal sentimental”, e logo depois “não estou mais interessado no que sinto”. Essas frases demonstram o duelo interno comum do barroco. Acredito que você tenha conseguido captar a ideia, e se não conseguiu o problema é seu.

Bônus: Quinhentismo

 O quinhentismo (como o nome indica, dos anos de 1500), um “movimento literário” caracterizado pelo envio de informações sobre o Brasil para Portugal, não é considerada exatamente uma escola literária, até porque o que vamos ter aqui são basicamente cartas.
 Eram exploradores e padres que andavam pela região e narravam os encontros com índios, animais nunca antes vistos e as paisagens surpreendentes, dignas de um gigante pela própria natureza. Nesse contexto era muito comum a adoção de uma irrelevância para com a vida do indígena, hábito que foi quebrado pelo Padre Anchieta, criador do primeiro dicionário tupi-guarani!

 E já que não é exatamente uma escola literária, também não precisamos ter aqui uma referência direta ao “estilo de escrita” típico dos seus autores. Pelo contrários, teremos algo aqui tematicamente relacionado ( que você já deve ter adivinhado qual é). A música Índios, que fecha o 2º álbum da banda, fala da perspectiva de… Um índio em frente à colonização. Citarei aqui os principais trechos e suas referências:

Quem me dera ao menos uma vez
Ter de volta todo o ouro que entreguei a quem
Conseguiu me convencer que era prova de amizade
Se alguém levasse embora até o que eu não tinha

 Esse aqui é bem óbvio, não é? Uma crítica ao fato de os Portugueses terem explorado incessantemente os recursos naturais do Brasil

Mas nos deram espelhos
E vimos um mundo doente

 Uma possível referência às diversas doenças que os Portugueses trouxeram com eles. Como o sistema imunológico dos índios não estava adaptado para esses invasores, muitos acabaram sucumbindo.

 Quem me dera ao menos uma vez
Entender como um só deus ao mesmo tempo é três
E esse mesmo deus foi morto por vocês
Sua maldade então, deixaram deus tão triste

 A história do novo testamento visto por alguém “de fora”. Esse trecho reflete também a catequização dos povos índigenas, fenômeno que ocorre até hoje e foi o principal tópico do Sínodo da Amazônia. É até um pouco cômico imaginar um padre dizendo “Então esse Deus são três coisas ao mesmo tempo…………… e nós matamos ele”.

Enfim! Vejo vocês no próximo post, que pode ser a próxima parte, ou não… Quem sabe? Eu não sei.

Uma resposta

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Posts Relacionados