Blizzard transformou sua própria festa num enterro

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Atenção: o artigo a seguir fala sobre assédio assexual e abuso de poder, além de citar mortes. Se você tem sensibilidade à algum desses tópicos, não recomendamos a leitura.

Desenho de cinco acentureiros machucados chegando na cidade medieval de Ventobravo. Eles estão cansados, alguns tem braços quebrados e roupas esfarropadas. Há um gnomo, um anão, uma draenei, um elfo noturno e uma humana.
Imagem original: Blizzard, trailer de “Juntos em Ventobravo”

    Hearthstone, o famoso jogo de cartas colecionáveis virtual da Blizzard, marcou o primeiro semestre desse ano com o lançamento da expansão Forjados nos Sertões. O novo conjunto não só trouxe cartas inéditas, como mudanças em toda a estrutura do jogo e o início de uma história que vamos acompanhar até a terceira e a ainda misteriosa última expansão do ano. Além disso, a expansão tinha uma temática forte que acertou em cheio o coração de diversos jogadores – a Horda, um grupo de guerreiros ferozes, e a experiência do World of Warcraft (WOW, outro jogo da Blizzard) para iniciantes.

    No início desse mês foi anunciada a segunda expansão do ano: Juntos em Ventobravo. Focado na Aliança, um grupo de soldados honrados, e na experiência dos jogadores de WOW durante os “níveis médios”. A revelação de cartas, como é de hábito, teve início em anúncios da própria Blizzard, e depois foi se expandindo para criadores de conteúdo de Hearthstone. Streamers, podcasters e sites de notícias divulgavam as cartas que lhe foram encarregadas de acordo com o cronograma definido pela Blizzard. À cada revelação, a comunidade se juntava para comentar e discutir novas possibilidades, estratégias ou só pra fazer memes mesmo. A expansão contava com muitas cartas interessantes ou engraçadas (as vezes os dois) e o hype estava nas alturas. Tudo correu muito bem até aquela fatídica quinta-feira, dia 23 de julho.

    Na manhã desse dia, a Bloomberg, grande portal estadunidense de notícias, publicou uma reportagem sobre um processo que a Blizzard estaria sofrendo, movido por um departamento de justiça da Califórnia, por fazer vista grossa para uma cultura machista entre seus funcionários.
    Ao primeiro olhar, pode ser apenas mais uma daquelas notícias que não causam choque mais. O que seria essa ‘cultura machista’? Dar salários menores para mulheres? Não demitir alguém que assediou uma funcionária? Ou seria outra coisa que, infelizmente, se tornou comum ser revelada em grandes desenvolvedoras de jogos? (olhando para vocês, Riot e Ubisoft). Acontece que, de acordo com as acusações, aconteceram coisas dentro da Blizzard piores, MUITO piores do que poderíamos imaginar.

    Entrando em detalhes sobre as acusações: haveria o hábito, entre alguns funcionários homens, de ficar bêbado e sair pelos escritórios dando em cima de funcionárias, fazendo piadas inapropriadas sobre sexo. Alguns superiores também teriam passado dias jogando vídeo-games enquanto encarregavam funcionárias de cobrir suas responsabilidades. Estruturalmente, a empresa também evitava dar promoções para funcionárias, “pois elas poderiam ficar grávidas” e reclamava quando mães saiam mais cedo para buscar sua criança na escola. Há também relatos de que salas de amamentação eram utilizadas por homens para a realização de reuniões.
    No caso mais extremo registrado nos arquivos do processo, uma funcionária teria cometido suicídio durante uma viagem à trabalho com um superior após sofrer extremo assédio sexual, incluindo ter tido nudes vazados durante uma festa de natal da empresa. Após investigação, a polícia teria descoberto que o superior dela levou lubrificante e brinquedos sexuais para a viagem.

    É importante, por tanto, ressaltar aqui que o processo não é feito apenas em cima de uma ou duas acusações (o que já seria o suficiente, diga-se de passagem). Não se pode dizer que x pessoa fez isso por vingança ou para chamar atenção. A investigação, que começou há mais de dois anos, junta relatos, investigações policiais e informações de fontes de dentro da empresa. Há inclusive a citação de pessoas específicas que teriam sido responsáveis pelos assédios, o que mostra que ninguém tá de brincadeira nessa situação. O pior é que essa cultura já seria muito antiga na empresa, precedendo mesmo a aquisição dela pela gigante Activision.

    Bem, evidentemente essa notícia não pegou bem para a empresa. A reportagem caiu como uma bomba sobre o colo de diversas pessoas que gerenciam comunidades relacionadas à Blizzard ou que possuem alguma ligação, mesmo que não contratual, com a gigante desenvolvedora de jogos. As cartas continuavam a ser reveladas de hora em hora enquanto as pessoas iam, pouco a pouco, tomando conhecimento do que acontecia dentro da desenvolvedora do jogo. “É muito estranho ver essa notícia em meio às revelações de cartas”, disse um usuário do Reddit comentando a reportagem da Bloomberg no fórum r/hearthstone. Não demorou muito para alguém parar e dizer “não dá pra continuar com esse clima de comemoração numa situação dessas”, e essa pessoa foi a streamer/youtuber Alliestraza. Foi aí que o barraco desabou.

   O cronograma de revelações estava sendo seguido normalmente, até que uma carta foi removida subitamente do site. Ninguém entendeu o que havia acontecido e começaram a circular algumas piadas como “vão nerfar o card antes de lançar”. Pouco tempo depois, chegou a hora da próxima carta ser revelada, e o site do Hearthstone indicava que isso aconteceria no canal da Alliestraza, mas o tempo foi passando, passando, passando… E nenhum vídeo apareceu lá pra mostrar a tal carta nova.

    Em um vídeo no seu twitter, Alliestraza, que já participou de diversos eventos da Blizzard e revelou cartas em expansões anteriores, explicou que não iria revelar sua carta naquele dia, pois não era a hora para isso, e então falou sobre o processo, as acusações de assédio e outros tópicos relacionados. Ela recebeu o apoio de diversas pessoas da cena e até mesmo de famosos funcionários da equipe Hearthstone, como Celestalon (um dos principais membros) e Songbird_HS (uma das responsáveis pelas ideias por trás de cada expansão). Não demorou muito para a próxima pessoa encarregada de revelar um card, Lt. Eddy, confirmar que também não iria revelar sua carta. O portal PC Gamer, discretamente, jogou sua revelação para outro dia. E aí o caos se instaurou na comunidade. Será que ainda teríamos mais revelações? O que a Blizzard vai fazer?

    Naquela quinta, a única revelação que ocorreu depois do tweet da Alliestraza foi a carta do Tesdey, streamer/youtuber brasileiro, que fez um vídeo explicando a polêmica e apoiando aqueles que decidiram não revelar a carta. Ele também explicou que ainda faria a revelação porque contou com a ajuda de 4 familiares/amigos para produzir o vídeo da revelação e que não iria desistir dele por algo que estava totalmente fora de seu alcance. Assistindo o vídeo dá pra perceber que realmente teve muito forço envolvido naquilo, e ficou muito bom.

    Enfim, na sexta as revelações voltaram, mas com muitas pessoas cancelando as suas ainda. É importante notar que nunca havia acontecido algo assim antes numa expansão de Hearthstone, então todo mundo está perdido, incluindo a própria Blizzard, que não sabe o que faz agora com a típica “grande stream” de revelação de cards, onde eles mostram todas as cartas que faltaram ser reveladas. A expansão saí dia 1 de Agosto e até agora não temos uma nota oficial da empresa dizendo como as cartas serão reveladas. A stream estava marcada para hoje, mas foi cancelada faltando 30 minutos para iniciar, o que é compreensível já que não há clima para um criador de conteúdo ir lá falar de cartinhas para uma empresa acusada de apoiar uma cultura machista (eu nem quero imaginar como seria o chat dessa transmissão).
    Ou seja, o clima de festa pré-expansão ficou, de uma hora para a outra, extremamente mórbido.    

    Os moderadores de fóruns ligados à jogos da Blizzard, como r/Hearthstone, r/wow e r/Overwatch se uniram para lançar uma nota única falando sobre as acusações e esperando uma medida concreta da empresa para combater essa cultura machista. Muitas pessoas já cancelaram sua pré-compra da expansão, que inclui 80 pacotes da novo conjunto com um desconto próximo do 50%, em protesto à conduta da Blizzard. Há aqueles que acham um exagero não revelar a carta por causa desse processo, que reclamam de uma hipocrisia pelas pessoas que cancelaram a revelação ainda fazerem stream do jogo, etc… Todas essas coisas que vem dessa cultura do “refutado” da internet. Há streamers que construiram sua fama em cima do Hearthstone, não tem como eles pararem de jogar do nada e perder sua maior fonte de renda, além do mais, isso não impede que eles reclamem do que a Blizzard fez. Assim como viver numa sociedade não impede que você critique ela.

    A comunidade do jogo, no geral, tem apoiado os criadores de conteúdo que cancelaram suas revelações de cartas, mas há aquele 10% que preferem ver uma cartinha do que apoiar uma luta contra o machismo. Já cheguei a ver uma pessoa dizendo que cancelou a pré-compra não pelas acusações do processo, mas sim pela forma que a Blizzard gerenciou o processo de revelação (eles acham que ela deveria simplesmente postar a carta que não foi revelada e tacar o foda-se). Meu deus, o chorume que é a sessão de comentários dos posts falando sobre isso…

    Durante o final de semana, alguns ex-funcionários da Blizzard  postaram em suas redes sociais sobre assédios que sofreram lá dentro. A lista de pessoas é longa e não inclui apenas mulheres: outros homens também relataram assédio sexual de seus superiores. Segundo o ÓTIMO repórter Jason Schreier (sério, leia os artigos desse cara sobre o making of de alguns jogos que floparam), o sentimento geral entre os funcionários da Blizzard é de revolta. Emails tem circulado de lá pra cá falando sobre o que deve ser feito e quem são os culpados. Entre os trabalhadores, que receberam um email do presidente da empresa falando sobre a importância da inclusão, estaria circulando um antigo vídeo onde, durante uma sessão de perguntas e respostas numa convenção, uma fã do WOW pergunta se as personagens um dia parariam de ser retratadas como se tivessem saído de um catálogo de lingeries. Ela é respondia pelos membros da empresa com risadas e piadas, e sai humilhada da situação. Dentre os funcionários da Blizzard que estavam lá, havia o atual presidente da empresa J. Allen Brack.
    Ainda hoje, dia 26/07/2021, cerca de 1000 funcionários e ex-funcionários da empresa assinaram um manifesto rejeitando as respostas que a Blizzard deu para as acusações e pedindo ações mais concretas.

    Enfim, vamos ver  o que a Blizzard fará com essa batata quente. Esperamos que todos os culpados sejam devidamente punidos, isto é: que a empresa tenha que pagar uma multa gigante para todos aqueles que sofreram pela sua impotência diante de algo tão maligno, e que todos os assediadores reconhecidos pelo processo, caso definidos como culpados pela justiça, sejam presos. 

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